ZéMaria não ficou de todo infeliz ao me rever. me olhou como nas outras cinco vezes neste ano. mas disse algo novo: agora me diga, que tanta lágrima é essa?
- é de raiva né de dor não. - eu disse assim, sem vírgulas.
- de toda forma, o médico vai anestesiar a área para poder botar o dedo de volta no lugar dele.
- tem gente que faz isso sem anestesia, né, zémaria? - rimei.
- é, mas do jeito que você tá...
- num carece de anestesiar não, né?
- ao contrário, é preciso mais do que a conta. quando a gente menos sente é porque tem alguma coisa guardada em algum lugar, mas tão forte, tão forte que tá tapando todo o resto de sentimento.
- eu só tô sentindo é raiva.
- é só o que você consegue ver, isso sim.
deu pouco mais de alguns minutos e o médico entrou no consultório, apressado, como quem tivesse algo mais importante a fazer. me deu apenas o veredicto: anestesia, imobilização, repouso por um mês inteiro.
puxou de lado a seringa e encheu com um daqueles líquidos transparentes. enfiou a agulha no bico e soltou aquele jato de água pro céu. fiquei de tocalha, sabendo que alguma coisa mais forte do que qualquer decisão estava por vir e, antes mesmo que eu chegasse a montar um plano emergencial de defesa, ele me enfiou a agulha no nervo do dedo mindinho. não sei se foi, mas foi.
gritei o que podia. já que não sei gritar direito. mais por mal-criação do que por qualquer outra resolução. o que tive em mim foi raiva - de o médico ter acordado a dor adormecida, de ter que sentir novamente. lembrei do dedo chutado, torto e inchado fora do lugar de sempre, latejando enquanto eu tomava banho, penteava cabelo, vestia roupa, escovava os dentes e reclamava das quedas, dos arranhões, das torções, dos cortes, das contusões. lembrei de tudo e aos poucos as ideias foram aclarando e da dor se fez uma dormência sincera de quem, agora sim, e não mais que de repente, não sentia nada.
olhei pra zémaria e entendi que até ali eu carregava em mim uma dor que era tão próxima dos sentidos que eu cheguei a pensar que era o próprio sentido. uma dor travestida de tato. e chorei como criança, com a desilusão da dor. chorei bem na horinha em que parou de doer.
ele sorriu: essa menina é toda ao avesso.
- ô zémaria, deixe de conversa, enfie essa agulha aqui no peito.
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